Fidelidade partidária - Saída para novo partido põe mandato em risco

O artigo 18 do Ato Institucional 02, de 27 de outubro de 1965 decretou: “Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos registros”. Seguiu-se a um bipartidarismo no Brasil, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), que seria o partido do governo, e com o Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), na oposição. Era possível, em tese, criar partidos, mas as cláusulas de barreira para tanto eram quase insuperáveis.
Nesse cenário político, a Emenda Constitucional 01/69, ao trazer uma verdadeira nova Constituição, passou a punir com a perda do mandato o parlamentar que “por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária”, e também aquele que “deixar o partido sob cuja legenda foi eleito”. O processo de cassação seria de competência da Justiça Eleitoral, emprestando ares oficiosos ao instrumento de cabresto parlamentar.
Assim, a fidelidade partidária, como causa para a perda de mandato parlamentar, era um importante instrumento de que se servia aquele regime ditatorial (1964-1985). Não apenas os parlamentares infiéis, que trocassem de partido no curso dos mandatos, como também os rebeldes, que votavam contra as orientações partidárias, poderiam perder os seus mandatos. Tinha-se à época um mandato imperativo, quando os parlamentares estavam vinculados às orientações dos partidos pelos quais se elegiam.
Tendo ampla maioria no Congresso Nacional, era impossível que o governo fosse derrotado em alguma deliberação. Com esse instrumento de fidelidade partidária, a ditadura pôde manter o Congresso Nacional aberto, certa de que não haveria resistência contra o governo. Os ventos democráticos já sopravam mundo afora, e era necessário que o Brasil não tivesse uma imagem tão negativa no cenário internacional. Era melhor manter um Congresso Nacional, desde que impotente a opor resistências ao governo, a fechá-lo.
Já no declínio do regime militar, promulgou-se a EC 11/78, que alterou, dentre outros dispositivos, a redação dada ao artigo 152 da Constituição de 1967 (com a redação da EC 01/69). A perda de mandato por infidelidade partidária foi mantida, mas foi criada a seguinte exceção no §5º deste artigo: “salvo se para participar, como fundador, da constituição de novo partido”.
A partir desta reforma constitucional que se tornou factível a criação de partidos, efetivamente superando o período do bipartidarismo no Brasil. O MDB foi refundado, sob o nome de Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), tendo a Arena sido extinta para a criação do Partido Democrático Social (PDS). Na mesma época, foram criados o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Progressista (PP). 
Com maioria governista no Congresso Nacional, mesmo em declínio, o regime ditatorial sofreu um duro golpe, ainda em 1984, já quando se formaria o Colégio Eleitoral em janeiro de 1985 para as eleições indiretas para presidente da República. O instituto do mandato imperativo acabou sendo relativizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Aplicando uma solução casuística, mas extremamente necessária à transição para a Democracia, o TSE respondeu a uma consulta (CTA n° 6988, Relator NERI DA SILVEIRA, julg. em 27.11.1984, DJ 10/12/1984, p. 21.160) no sentido de que na eleição indireta para presidente da República os parlamentares não seriam obrigados a seguir a orientação dos partidos, por não se tratar propriamente de diretriz partidária.
Com a regra do mandato imperativo, tendo por conseqüência aos rebeldes a perda de mandato, certamente seria eleito Paulo Maluf, do PDS, e era apoiado pelo regime ditatorial. Mas, pela decisão do TSE que conferiu ampla liberdade de voto aos parlamentares e aos delegados dos estados, foi possível a transição democrática, sendo eleitos os opositores ao regime de então, no caso Tancredo Neves presidente, e José Sarney o seu vice-presidente, ambos do PMDB.
Já empossado no novo governo, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 25, de 15 de maio de 1985 que, dentre outros modificações constitucionais, instituiu as eleições diretas para a Presidência da República, e pôs fim à fidelidade partidária como causa de perda de mandato, revogando-se o §5° do art. 152 da Constituição de 1967 (com a redação dada pela EC 01/69, e modificada pela EC n° 11/78). É interessante registrar que, com a mudança de todo um regime, era imprescindível extinguir a fidelidade partidária,ao menos naquele momento, para que as forças políticas se reajustassem no Parlamento. Afinal, a fidelidade partidária e o mandato imperativo eram os instrumentos de que se servia a ditadura para manter sob controle o Congresso Nacional. 
Na Constituinte cogitou-se restaurar a infidelidade partidária como causa de perda de mandato dos parlamentares, tendo sido rejeitada a proposta. Nesse cenário, após a promulgação da Constituição de 1988, o STF rejeitou a tese da perda do mandato por desfiliação partidária, inclusive aos suplentes, em histórico precedente de relatoria do ministro Moreira Alves (STF - MS 20927, T.P., julg. em 11/10/1989, DJ 15-04-1994 p. 8.061).
Anos depois, o TSE rompeu com a jurisprudência do STF, e reinstituiu a infidelidade partidária como causa de perda de mandato eletivo aos cargos conquistados pelo sistema proporcional (TSE - CTA nº 1398, Res. nº 22526/2007, Relator Min. Asfor Rocha, DJ 08/05/2007, p. 143). Ao contrário do tempo ditatorial, em que havia o mandato imperativo, manteve-se o mandato livre, mas permitiu-se a perda do cargo em caso de desfiliação do partido. Essa foi a resposta judicial aos imorais troca-trocas de partidos, muitas vezes antes mesmo da posse dos eleitos, desequilibrando o quadro partidário.
O STF placitou esse entendimento, assentando em "obter dictum" nas decisões denegatórias dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604, que após a resposta àquela consulta pelo TSE, o parlamentar que trocou de partido estaria sujeito a perda de mandato por infidelidade partidária (STF - MS 26604, Relatora Min. Cármen Lúcia, T.P., julgado em 04/10/2007, DJe 03-10-2008 p. 135). Neste julgamento, o STF definiu ainda que caberia à Justiça Eleitoral o julgamento dos pedidos de cassação por infidelidade, e também, na ausência de lei, regulamentar o procedimento por resolução. Nesta regulamentação provisória, o TSE disporia sobre causas excludentes da infidelidade partidária, disciplinando causas justas para a desfiliação. Pesou, para esta última parte, a consideração de que a fidelidade partidária é via de mão dupla, devendo ser cobrada também do partido, não sendo razoável exigir fidelidade do parlamentar quando traído pelo seu próprio partido.
Com esta autorização pelo STF, o TSE editou a Resolução 22.610/2007, disciplinando a competência, os prazos e o rito procedimental para os pedidos de perda de cargo. E também estipulou as causas consideradas como justas para a desfiliação. Dentre estas causas, consideradas justas, o TSE incluiu indevidamente a criação de partido (art 1°, §1°, II da Res. TSE nº 22.610/2007), fugindo do comando autorizador do STF, porque esta hipótese não representa infidelidade alguma do partido pelo qual se elegeu.
Pois bem, a Resolução TSE 22.610/2007 teve a sua constitucionalidade impugnada perante o STF, na ADI 3.999/DF, que foi julgada improcedente. Assentou o STF que, não obstante tratasse da resolução de matéria processual, reservada à lei federal, o TSE estava atuando na omissão do Congresso, e com autorização do próprio STF.
Já após esse julgamento, o PPS instaurou novo processo de controle de constitucionalidade, a ADI 4.583/DF, impugnando especificamente o artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007. Alega que esta questão não foi decidida na ADI 3.999/DF, e de fato não foi, e que o TSE extrapolou o comando do STF nos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604. Sustenta não ser a criação de partido uma causa justa para a desfiliação, violadora da Constituição.
De fato, registrou o ministro Gilmar Mendes no julgamento do Mandado de Segurança 26.604 que só admitia não aplicar a perda do mandato “situações específicas decorrentes de ruptura de compromissos programáticos por parte da agremiação, perseguição política ou outra situação de igual significado” (trecho do voto do ministro Gilmar Mendes no MS 29.604, julg. em 04/10/2007, disponibilizado pelo site do STF: www.stf.jus.br).
No mesmo sentido assentou o ministro Ayres Britto admitindo a desfiliação sem perda do mandato “por motivo imperioso, transcendente do seu puro subjetivismo”, quando ocorresse, exemplificou, “perseguição pessoal” ou “deserção dos ideiais de campanha e de programa partidário (...) pelo partido mesmo”.
Fica evidente que a criação de partido como exceção à perda de mandato foi reinstituída indevidamente pelo TSE, ao editar a resolução regulamentadora deste instituto sob a sua nova roupagem. Ao contrário de quando foi admitida em nosso ordenamento constitucional, já não se vive mais em um bipartidarismo, e nem está esta regra excepcional a afastar o dever de fidelidade, previsto expressamente na norma. Reitere-se, nas outras hipóteses admitidas pelo TSE como causas justas, a infidelidade seria do próprio partido, autorizando a desfiliação. Não é o caso da criação de partido.
O ministro Joaquim Barbosa, relator da ADI 4.583/DF, adotou o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/99, deixando de apreciar o pedido cautelar de suspensão da eficácia do dispositivo impugnado. Assim, esta questão será suscitada nos pedidos de perda de cargo a serem propostos em razão da iminente desfiliação em massa que ocorrerá após o registro de novos partidos pelo TSE, com a argüição incidental da inconstitucionalidade do artigo 1°, §1°, II da Resolução TSE 22.610/2007, tendo como parâmetro de controle o disposto nos artigos 14, § 3°, V; 17, caput; e 45, caput, da Constituição.
Em defesa, argumentarão os parlamentares trânsfugas a proteção à confiança, base estruturante da segurança jurídica. Todavia, não poderão negar que este dispositivo já estaria impugnado perante o STF, não sendo razoável admitir que desconheciam as razões de contestação da constitucionalidade do artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007.
Ainda que vencida a argüição de inconstitucionalidade, só se terá como autorizado desligamento de parlamentares que saírem no prazo de 30 dias após o registro pelo TSE, conforme foi respondido à Consulta 75.535 em junho de 2011 (acórdão pendente de publicação, mas disponibilizado o voto condutor da ministra NANCY ANDRIGHI). E neste caso, é possível que o TSE aplique a jurisprudência presente ao tempo que esta causa era considerada justa para a desfiliação, para considerar autorizada apenas a migração dos fundadores e de quem haja assinado “declaração individual ou coletiva de apoio aos atos constitutivos preliminares (manifesto, estatuto, programa), desde que essa manifestação acompanhe ou venha a ser anexada ao pedido de registro provisório” (TSE - CTA nº 7087, Res. nº 12019/1984, Relator Min. Washington Bolívar de Brito, DJ 10/12/1984, p. 21160).
Ou seja, só seria lícita a migração para a nova legenda pelo parlamentar que tenha ao menos assinado a lista de apoio à criação do partido, e desde que essa lista tenha sido efetivamente utilizada no processo de registro do estatuto do partido no TSE. Este aspecto pode afastar alguns parlamentares das novas legendas, especialmente nos estados em que não se conseguiu o apoio mínimo necessário exigido pelo artigo 7º, § 1° da Lei 9.096/95.
Concluindo, é possível que a hipótese de criação de partido, prevista no artigo 1°, § 1°, II da Resolução TSE 22.610/2007, seja declarada inconstitucional, ameaçando o mandato daqueles parlamentares que migrarem para o novo partido. E ainda que superada a argüição, ou admitida a tese da proteção à confiança, poderá ser exigida dos trânfugas que comprovem terem no mínimo assinado as listas de apoio para a criação da legenda.
Rodrigo Pires Ferreira Lago é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do site Os Constitucionalistas (www.osconstitucionalistas.com.br).
Revista Consultor Jurídico.

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